Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
Os
dois maiores poderes no Pará colidiram em abril de 2008. A Companhia Vale do
Rio Doce, maior empresa privada em atuação no território paraense, acusou o
governo do Estado de estimular, por omissão calculada, mais uma agressão
praticada contra a companhia pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Pela
nona vez em 13 meses, o MST invadiu e bloqueou a ferrovia de Carajás, a
terceira maior via de exportação do Brasil, que no ano passado movimentou
riquezas no valor de quase sete bilhões de dólares. O governo devolveu a
acusação: disse que só houve confronto porque a Vale foi inábil no tratamento
dado à questão.
De
fato, a empresa ajuizou uma ação que, em síntese, queria obrigar o governo a
cumprir a lei, impedindo a consumação de um crime anunciado: o bloqueio dos
trens, interrompendo o fluxo de minério, de carga geral e de passageiros entre
Parauapebas e o porto da ponta da Madeira, em São Luís do Maranhão, numa
extensão de 870 quilômetros.
A
situação, entretanto, é complexa. A ferrovia é uma concessão federal, outorgada
por 50 anos à Vale. Logo, envolve direitos e responsabilidades da União e não
só do Estado, que tem ao seu cargo a segurança pública em geral.
Já
o crime só existe quando se materializa. Até lá, todos são inocentes, embora
nem tanto. Com bastante antecipação, lideranças do MST anunciaram que o
bloqueio da ferrovia de Carajás era um dos itens do “abril vermelho”, uma série
de manifestações de protesto e reivindicação disseminadas pelo país.
Do
anúncio à sua consecução, os dias que transcorrem serviram para o movimento
reunir pessoas, exibir sua força, medir a reação dos demais personagens e
partir para o ato, como se ele fosse inevitável.
A
proposição da ação pela Vale, mesmo que rejeitada pelo juiz federal de Marabá,
combinada com a postura mais agressiva do presidente da empresa, modificaram o
cenário armado para os eventos anteriores. Roger Agnelli se permitiu desviar
seu jatinho para Belém e passar alguns momentos na cidade para advertir
pessoalmente a governadora Ana Júlia Carepa, do PT, para o efeito da agressão
do MST.
Tratou
os integrantes do movimento por bandidos e garantiu que não cederia à sua
intimidação, por ser ilegal. Chegou ao requinte inovador de, desta vez, não
ameaçar suspender a implantação do projeto de uma siderúrgica no Pará, que
representaria o almejado passo além da mera gusa no processo de beneficiamento
(ainda em escala primária) do rico minério de ferro de Carajás. Agora, disse
que a Vale continuará a siderúrgica sem contar com o governo do Estado, embora
atos como o do MST venham a inibir outros investimentos, trazendo grandes prejuízos
ao Pará.
A
declaração de guerra do presidente da Vale ganhou eco ultra-ampliado na
imprensa local e nacional (regiamente servida pela publicidade da empresa, que
agora se tornou anunciante de grande peso, ao contrário do procedimento
anterior, especialmente na era estatal) e provocou reações de representações da
sociedade, sobretudo junto ao empresariado.
Como
o clamor ganhou corpo, o MST alterou sua estratégia: procurou desvincular-se do
bloqueio da ferrovia, transferindo-o para a responsabilidade de um difuso
movimento de garimpeiros, sem credenciais para promover um ato de tal
envergadura.
As
camisas e bandeiras vermelhas mudaram de cor, tornando-se amarelas. Podiam ser
interpretadas como o símbolo da desculpa esfarrapada do MST para se isentar de
responsabilidade, tão sem jeito que imediatamente o movimento divulgou nota
oficial declarando seu apoio à iniciativa dos garimpeiros, sem mudar o tom da
linguagem, mais adequada para o dono da empreitada.
Essa
nova estratégia pode indicar a esperteza dos dirigentes do MST. Ao agir assim,
eles se livraram das consequências legais do ato que planejaram e executaram
(como a multa, previamente determinada pela justiça do Rio de Janeiro, e a
possibilidade de prisão, ainda pendente). Mas, dependendo dos desdobramentos
dessa nova situação, esse diversionismo pode começar a enfraquecê-lo, revelando
algumas de suas fragilidades, como a de se valer do apoio oficial, velado ou
explícito, verbal ou material, para poder exibir sua força.
A
relação entre um movimento que se recusa à institucionalização e legalização
(não aceita se tornar pessoa jurídica), mas se vale do aparato do poder
público, inclusive para arrecadar dinheiro, está sujeita a grandes flutuações
conjunturais. Pode se manter eficaz e até duradoura, mas pode se corroer de
súbito.
A
ação do governo estadual no episódio guardou coerência com o padrão dessa
relação difusa. As polícias militar e civil acompanharam a obstrução dos
trilhos e a paralisação da composição ferroviária, só intervindo em certo
momento, quando o desbloqueio já parecia acertado.
A
Polícia Federal, que seguiu essa sincronia, não deixou, porém, de carregar um
elemento material do delito: prendeu e indiciou dois dos organizadores da
manifestação, um deles da prefeitura de Parauapebas, sob o comando do PT e
acusada de ser a principal patrocinadora do ato do MST.
A
prefeitura e o governo podem alegar que assim se comportaram porque precisam
ser o instrumento das justas reivindicações dos sem-terra e demais habitantes
da região, desassistidos pelo Estado, e porque o poder da Vale tem sido usado
abusivamente, sem freios nem peias, como precisava ser. É um argumento
poderoso.
No
entanto, há também outros argumentos apresentados nos bastidores do poder: a
constante impetuosidade sobre a Vale teria a finalidade de pressioná-la e
forçá-la a ceder recursos ao município de Parauapenas, que reivindica na
justiça direitos no valor de 600 milhões de reais e já teria gasto por conta
parte desses recursos, embora sua obtenção ainda seja temerária.
Num
ambiente de ocultações e manobras, todo tipo de interpretação e de boato tem
curso fácil. Principalmente quando se pode de pronto montar uma agenda com
itens graves que jamais são esclarecidos, sobretudo porque a poderosa Vale se
recusa a descer do seu Olimpo metropolitano, dialogar com pobres mortais
interioranos e ceder-lhes ao menos alguns de seus anéis, elaborados à custa da
exaustão dos recursos naturais do Pará.
A
Vale acumula um contencioso enorme e insolúvel com o Estado, pelo qual o doutor
Agnelli não consegue disfarçar sua má-vontade. Essa arrogância gera a antipatia
geral pela empresa.
Sentindo-se
incompreendida e injustiçada (não sem alguma razão), a Vale reage com
mais arrogância. Mesmo quando se dispõe a fazer alguma concessão ou aceitar
alguma ponderação, age como se estivesse realizando uma caridade ou movida por
mera liberalidade e paternalismo.
Não
pode ser amada ou compreendida uma empresa que gera 10 mil demandas
trabalhistas em Parauapebas, forçando a rápida duplicação da antiga junta de
justiça, que não deu conta do trabalho. Agora, nem mais as duas são
suficientes. As queixas são contra as empreiteiras da Vale em Carajás, mas a
reação massiva é fruto de uma terceirização sem fronteiras, irresponsável. E de
uma estratégia advocatícia estabelecida com base no frio cálculo aritmético,
cujo resultado é revelar que a quitação da dívida em juízo é mais rentável do
que o respeito prévio dos direitos trabalhistas.
A
terceirização de 90% da mão de obra de Carajás cortaria o elo da empresa com
suas empreiteiras, protegendo-a em seu castelo de vidro por um fosso
intransponível.
Esta
é a ética predominante na Vale privatizada: ela se pauta pelos números, pela
ânsia quantitativa de resultados e de grandezas, abstraindo pessoas e relações
sociais, ignorando a paisagem em torno de suas catedrais da produção. Uma vez
estabelecidas as metas, por critérios contábeis, atuariais, financeiros, de
marketing e de gestão de negócios, o que importa é alcançá-las.
A
grandeza da empresa é também sua fragilidade: pés sem enraizamento têm que
sustentar um comando sujeito à macrocefalia de poder. A autoritária voz de
mando dissipou a bruma do querer bem que funcionários, clientes e população
tinham pela CVRD, com todos seus erros e distorções.
O
poder absoluto de que a Vale atual quer dispor para fazer seus projetos se
realizarem exatamente como foram concebidos a levam a se tornar um macaco em
loja de louças, ainda que louças de má qualidade, como as que os dois governos
– o estadual e o federal – exibem em suas vitrines, quando se apresentam para
encarar o difícil, complexo e amplo contencioso com a empresa nos diversos
terrenos e setores em que ela atua.
Como
não há um diálogo franco e as regras do jogo mudam, assim como as próprias cartas
colocadas sobre a mesa (e abaixo dela, e no colete dos jogadores), uma parte
tenta enganar a outra e tirar mais vantagem da relação, manipulando armas e
parceiros conforme as circunstâncias.
O
efeito desse tipo de diálogo é um desgaste geral, com prejuízos para todos, ou
para a esmagadora maioria dos que não têm meios de perceber a verdade e
participar da cena como personagens ativos, não apenas como marionetes ou
buchas de canhão.
Enquanto
perdurar essa forma irracional e caótica de relação entre as duas fontes de
maior poder no Estado, o jogo só trará vantagens para os iniciados e com acesso
à cúpula desses poderes. Até que as riquezas que motivam toda essa movimentação
se tenham esgotado, quando então haverá pouco o que fazer porque a Inês
metafórica dessa peça já estará morta.
(Abril de 2008)
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