Lúcio Flávio Pinto
Editor do Jornal Pessoal
“O
que é ser um jornalista de rua?”
Uma
aluna do curso de comunicação social da Unama me fez esta pergunta, pela qual
tanto esperava, durante uma palestra na semana passada. Ela se referia a uma
declaração anterior que fiz. Lamentei a ausência de repórteres na linha de
frente dos acontecimentos, enquanto a retaguarda da imprensa está
congestionada.
Antes
da obrigatoriedade do diploma do curso superior de comunicação social para o
exercício da profissão de jornalista, qualquer candidato a um posto na redação
era mandado primeiro para trabalhar na cobertura de polícia. Era uma iniciativa
sábia.
O
“foca” sofria o impacto dos fatos que passava a cobrir, como assaltos ou
assassinatos, mas o contato direto com as pessoas desenvolvia seu senso de
observação, a capacidade de apuração de informações, a ousadia, a criatividade
e o mais importante: a identificação do que constituía a matéria prima do
jornalismo. Dentre tantos dados que anotava, precisava identificar aqueles que
integrariam a notícia.
A
cabeça de um jornalista, como de outros profissionais que lidam com a dinâmica
dos acontecimentos, funciona em duplo movimento. Enquanto capta informações
precisa ordená-las, selecionando o que merece destaque e organizando o futuro
texto que ainda irá escrever.
Um
bom repórter chega à redação com sua matéria já concebida. Ao começar a
redigir, seus desafios são abrir bem o texto, com dois ou três parágrafos
fortes, que atraiam e mantenham a atenção do leitor, e um final que deixe um
gosto de quero mais, de disposição do leitor para o que virá no dia seguinte,
na suíte da matéria inaugural.
O
acerto desse procedimento tinha um inconveniente: o jornalista passava a
confiar apenas nos instintos, no seu faro para as informações novas,
importantes, relevantes, curiosas ou interessantes. A história começava e
terminava todos os dias sem que ele aprimorasse o entendimento dos fatos
aparentemente isolados, singulares, sem qualquer encadeamento.
Um
repórter à antiga tem a malícia necessária, depois de anos a lidar com todo
tipo de gente, nas mais imprevisíveis situações. Ele conhece traficantes de
drogas e as maiores autoridades públicas, pessoas dignas e canalhas, tem fontes
em todos os lugares e já passou por boa parte deles. Mas, a partir de certo
momento da sua carreira, começava a se embotar, se repetir, perdia a
sensibilidade para as mudanças e, sobretudo, não ia além do que via.
Para
evitar essas deficiências era preciso se reciclar. Aprender, refazer suas
formas de percepção. Na velha redação havia poucos profissionais dispostos a
aceitar esse desafio da sistematização do conhecimento, do aprendizado daquilo
que constitui o acervo do pensamento humano, por meio da reflexão que as
melhores cabeças fizeram e nos legaram através dos meios de transmissão, em
especial o livro, e do melhor local para absorvê-las (ao menos em tese), as
universidades.
Apesar
dessa limitação estrutural, digamos assim, havia grandes jornalistas. A razão
estava num hábito arraigado desses profissionais: ler muito, ter uma
curiosidade inesgotável. Por seus dons naturais e pelo exercício da leitura,
eles chegaram às bordas da literatura – e vários deles cruzaram essa fronteira
demarcadora e intransponível para a maior parte dos jornalistas. É por isso
que, mesmo lidando com a elaboração de textos diariamente, eles não são
escritores e, a rigor, nem intelectuais. São os profissionais dos faits-divers, de um brilho efêmero, que
raramente sobrevive à circulação da publicação onde escrevem.
A
formação acadêmica imposta a partir da norma legal estabelecida, através do
ditatorial decreto-lei, pela Junta Militar, em 1969, abriu as portas do saber
organizado e sistematizado para os novos jornalistas. Mas os confinou em
cubículos e os despejou para a cozinha da imprensa. É o lugar no qual manejam
seus computadores, têm contato indireto com as fontes e lidam com realidades
virtuais. É frequente que nem conheçam suas fontes ou jamais presenciem ou testemunhem
sobre os fatos aos quais se reportam.
O
jornalismo perdeu vida, sangue, nervos e a sua maior significação. Não é
esperado e nem mesmo desejado que o jornalismo ocupe um lugar melhor preenchido
pela literatura, a sociologia, a psicologia ou a ciência política. É
lastimável, entretanto, que renuncie ao seu lugar próprio e justo de
jornalismo. Isso ocorre quando os repórteres deixam de estar ao lado dos
episódios relevantes do cotidiano, dos imprevistos do dia a dia, dos
acontecimentos mais significativos.
Ao
invés de serem testemunhas e olheiros da roda concreta da história, são
porta-vozes de personagens, repetidores de conhecimentos que recebem prontos e
acabados, burocratas da compilação de dados. Vão se tornando cada vez mais
estáticos, distanciados da dinâmica social, atados às pautas dos seus chefes.
Essa
deficiência tem uma ênfase ainda mais danosa na Amazônia. Sua condição de
fronteira resulta em novos acontecimentos permanentemente, mudanças constantes,
dispersão e deslocamento de atividades e pessoas. Como as empresas
jornalísticas reduziram ao mínimo seu investimento em viagens, que poderiam
levar seus repórteres aos locais onde realmente a história pulsa e acontece, o
resultado é esse círculo vicioso em torno das mesmas informações, da padronização
da cobertura jornalística, da quadratura do círculo.
Os
novos donos da Amazônia querem continuar a explorá-la da forma vergonhosa como
se têm conduzido. Essa imprensa encolhida, retraída ou acovardada lhes facilita
essa missão colonial.
Um comentário:
Concordo plenamente. Infelizmente somos forçados a trabalhar nos interiores, marcando tudo, porém o contato com a rua, com o povo, com as fontes, só por telefone... É uma pena...
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