segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Memória de Santarém - Lúcio Flávio Pinto

A presença dos nordestinos

Evangelista Damasceno escreveu o artigo reproduzido a seguir em 25 de dezembro de 1958, mas ele só foi publicado quase seis anos depois, em maio de 1964. Contém boas observações sobre a imigração nordestina na Amazônia, com suas amplas repercussões e motivações.

Mais ou menos às 9 horas [de 19 de dezembro de 1958] saltaram do motor Dioclécio em praias santarenas os nossos patrícios do Nordeste, acossados pela seca calamitosa que periodicamente despovoa aquela área do solo pátrio. Diversos conterrâneos seus estavam à espera na praia, ansiosos de avistarem naquele amontoado humano um parente ou pessoa conhecida que lhes viesse a contar algo sobre a terra comum e esturricada pela falta de chuva. Os nossos estudantes, julgo que dirigidos por um Irmão do Ginásio D. Amando, solicitamente ajudavam-nos a desembarcar e a descarregar aqueles trastes velhos, que para alguns consistia a única riqueza.
Vi, também, o amigo Vidal batendo fotos documentativas de tanta miséria.
Deles, quem primeiro saltou à praia foi uma cafuzazinha de 10 anos presumíveis, que mostrou um sorriso inocente sem avaliar as lágrimas que a sua mamãezinha com certeza já derramou.
Homens, mulheres e crianças, que julguei constituírem famílias autenticamente de lavradores, desembarcaram desnutridos e esfarrapados, enquanto outros vinham razoavelmente apresentáveis.
Embora seja o Brasil um país essencialmente agrícola, aqueles que se entregam ao amanho da terra quase sempre apresentam-se desta maneira. Agricultura só é meio de vida para os latifundiários.
Verdadeiramente precisamos de braços para fomentar a nossa riqueza vegetal. Entretanto, muitos desses que aqui aportaram, com pouco tempo de permanência entre nós, tornam-se marreteiros, donos de quitandas ou de tabernas. Os outros, autenticamente lavradores, vão desbastar as nossas matas, fazendo precocemente estéreis faixas de terreno que não sabem cultivar com inteligência.
São os piquiazeiros, as castanheiras, os cumaruzeiros e outros gigantes das florestas que servem para diversos fins, que vão sentir os impactos de machados afiados brandidos por braços que, numa fúria insana, realizam enormes devastações na gleba, porquanto o nordestino o que deseja de início é ganhar dinheiro para retornar aos seus pagos, logo que tenha notícias que choveu em seu sertão.
Felizmente, devido os nossos caboclos apresentarem maior desenvolvimento de instrução, eles são absorvidos pelos nossos costumes, hábitos e modo de falar, e aqueles que vieram pequeninos, dentro em pouco já estão censurando o linguajar dos pais e chamam os novos flagelados de "arigós".
E por esse intermédio os velhos nordestinos vão esquecendo as saudades do berço natal e os filhos, em idade pubescente, consorciam-se com a nossa gente, amalgamando uma raça que se caracteriza pela sobriedade e espírito atavicamente afeito às vicissitudes da vida.
O que entristece é saber que alguns nordestinos fazem da seca o motivo de viajar à custa do governo, pois, como verdadeiras aves de arribação, os tais que assim procedem vivem permutando portos e morando temporariamente em certos deles. Manda a verdade dizer que é minoria insignificante os que praticam desse modo. Em regra geral somente os desprovidos de bom senso deixam-se levar pelo espírito aventureiro, embora propaguem que o nordestino é nômade por temperamento.
Entretanto, subtraindo-se os valores positivos dos negativos, o que fica sobrando da operação é o quanto basta para ir semeando brasilidade nesta Amazônia que também é deles por direito de nacionalidade. E nesse dia de Natal em que se confraternizam os povos mais longínquos, eu saúdo o meu irmão nordestino e peço a Deus que o ano de 1959 lhe seja pródigo.
O editor de O Jornal de Santarém, que publicou o artigo, se sentiu na obrigação de acrescentar a seguinte nota da redação, que reflete sutilmente certos preconceitos vigentes sobre os "arigós":
Desses que aqui chegaram maltrapilhos e sem dinheiro, muitos já estão quase milionários. Sóbrios até o extremo e mercantis por índole, todos os meios julgam legais para auferirem proventos.
Entretanto, seja como for, ajudam o progresso desta enorme faixa de solo pátrio tão esquecido e vilipendiado.

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