sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Dilma não é Lula: o que isso significa

Lúcio Flávio Pinto

Ainda levará algum tempo para que se possa compreender por inteiro o significado e os efeitos da eleição presidencial deste ano no Brasil. Não há dúvida que seu enredo é de autoria do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, façanha nunca antes realizada na mesma plenitude. Lula escolheu sua candidata prematuramente, quando sua sucessão era apenas uma especulação. Surpreendeu com sua favorita. Dilma Roussef não existia, eleitoralmente falando. Nunca disputara um cargo político. Comportava-se de forma a provocar antipatias (mas também temor, como sugeria Maquiavel). Não tinha presença cênica. Parecia talhada para ficar à sombra, como uma autêntica tecnocrata petista, espécie nova no partido, ao qual só aderiu às vésperas da chegada ao poder. Chegadaque transformou o próprio PT.

Nem candidata ela poderia ter sido, se dependesse do partido. Ela era fruto exclusivo de Lula, que podia se dar ao luxo, com sua popularidade de 80%, de fazer o que quisesse. Ele podia ter desejado um petista de valor comprovado, como Jacques Wagner (o único a criticar publicamente os excessos de campanha do president- cabo eleitoral, embora só tenha se manifestado depois de reeleito), ou qualquer outro. Mas nenhum dos melhores nomes do partido iria dever-lhe integralmente.

Com Dilma, o ponto de partida seria o zero. Só haveria ponto de chegada se o candidato fosse o próprio Lula. Em quase todos os palanques ele era o protagonista. Dilma nem foi ao Paraná no 2º turno. Como a situação para ela no Estado era delicada, Lula dispensou os intermediários. Foi pedir votos sozinho.


Mesmo com sua nunca igualada popularidade, o presidente não conseguiu a vitória no 1º turno, conforme imaginou e considerou possível. Teve um susto no início da campanha para o 2º turno, quando foi esboçada uma reação de José Serra. Deixou o que ainda restava (se restava) de escrúpulos de lado, esqueceu a sede do governo e virou pleno candidato, papel insólito na história da república. Foi multado pela justiça eleitoral, mas essas penalidades, por sua irrelevância, só fizeram estimulá-lo. Fosse outra a justiça superior brasileira (como aquele Supremo Tribunal Federal que enfrentou os marechais Castelo Branco e Costa e Silva, os primeiros presidentes militares), o escândalo do abuso da máquina pública teria tido resultados penais ao invés de votos consagradores.

Por muitos justos motivos, Lula teria conseguido eleger seu candidato sem precisar recorrer às artimanhas nas quais se excedeu durante a campanha. Mas ele queria em seu lugar alguém que lhe devesse tudo. Por isso a escolhida foi Dilma Rousseff. Ela tornaria possível a volta do benfeitor em 2014. Sabendo que só conseguiu se tornar a primeira mulher a assumir a presidência da república graças à intensa participação de Lula, haverá de se contentar com um mandato. Não irá exigir a reeleição.

Tão possível quanto isso acontecer é a probabilidade de surpresas a partir do momento em que a presidente eleita assumir o cargo. Não por ingratidão, por efeito da condição que a criatura costuma assumir diante do criador, pela sedução do poder ou qualquer fator subjetivo: pelas próprias contingências da história, pelos fatos que costumam extrapolar a vontade dos homens.

Independente do que é ou representa, a vitória de Dilma deslocou os paulistas do centro do mando nacional. Além de outras características desastrosas, do candidato e da sua campanha, José Serra se enfraqueceu porque – como alguns observaram – suas melhores qualidades estavam indissoluvelmente associadas ao modo paulista de ser e dominar. Ele ainda cometeu o erro fatal de, no início da corrida, se apresentar como se fosse mais lulista do que a candidata do PT. Tornou-se irrelevante, além de antipático, previsível, a permanência de São Paulo sem compensação.

Sagazmente, Lula encaminhou sua mensagem para o Nordeste, consolidando a aliança com a parte pobre do país, por ele beneficiada como nunca antes, embora seu governo tenha favorecido mais do que proporcionalmente a parte mais rica do Brasil. Por isso a pobreza diminuiu, mas não na mesma proporção a desigualdade social. Enquanto colocou o Bolsa Família e outras políticas compensatórias a serviço dos deserdados pelo PSDB, entregou o BNDES aos privilegiados de sempre (e mais o Banco do Brasil, a Caixa, o Banco Central e outras instâncias de menor calibre). Mas Lula é inegavelmente um homem do povo. Sua imagem foi o eficiente anestésico contra a percepção dessa dupla face, a oculta mais forte do que a pública.

Dilma não tem esse atributo. Além disso, não terá um contexto tão favorável como o que colocou Lula na crista da onda, durante o segundo mandato. A conta dos investimentos sem cobertura, dos juros excessivos para a manutenção do fluxo de capitais estrangeiros, da insuficiência de recursos permanentes para os programas sociais (que já obrigaram o governo a tomar emprestado do Banco Mundial) e outras rubricas onerosas, que Lula empurrou com a barriga, cairão sob o colo da presidente logo no começo da sua gestão. Ela deverá ser colocada diante da lealdade canina ao padrinho, que a cobrará, e a necessidade de demonstrar com seus atos a eficiência que ela e seus patrocinadores lhe atribuíram. Se tudo não passar de propaganda e fantasia, uma nova história começará. Bem diferente do enredo que Lula traçou.

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