by Lúcio Flávio Pinto |
Dei
a entrevista abaixo em junho de 2003. No arquivo não ficou o registro
de para quem ela foi dada, mas talvezs tenha sido para um jornal de
Belém.Acho que ainda é útil.
Até
que nível de direção da Vale teus artigos atingem (e já atingiram em
outras épocas e diretorias)? A mineradora, por sua vez, já desceu de seu
Olimpo para te responder, contraditar? Ou já te convidou a subir até lá
para dialogar?
O
presidente da Vale com quem mais tive contato foi o último da fase
estatal da empresa, José Schettino. Certa vez ele me convidou para ir ao
Rio e conversamos informalmente em seu gabinete, que me espantou pelo
detalhe, bastante sugestivo, de ser decorado com motivos japoneses (o
Japão era, até o ano passado, o maior comprador do minério de ferro de
Carajás e um dos grandes parceiros da CVRD). Ele teve um gesto que me
sensibilizou muito.
Escreveu
uma carta elogiando o meu trabalho e ressaltando que, apesar de nossas
divergências, a Vale reconhecia meu empenho na defesa do interesse
público e minha seriedade. Juntei o documento nos processos que
Rosângela Maiorana Kzan, do grupo Liberal, moveu contra mim, a pretexto
de ter sido ofendida em sua honra por meus artigos.
Schettino
era um engenheiro de carreira na empresa, como a maioria dos seus
diretores. Por ser estatal, a Vale tinha que ceder a injunções
políticas, mas conseguiu isolar essa cota num compartimento isolado. Só
eventualmente esse peso político teve influência mais forte nas decisões
da empresa. Seu grande patrimônio foi ter formado uma cultura técnica e
ética entre seus funcionários. Vários deles, com cargos de chefia,
foram meus interlocutores desde que a empresa se instalou no Pará, em
1969.
Alguns
ficaram sendo meus amigos. Eram (e ainda são) pessoas de espírito
público, profissionais competentes, honrados, dispostos a contribuir
para a melhoria do país. Como nem sempre podiam se manifestar
publicamente, conversavam comigo em off quando precisavam expressar posições ou divulgar informações que estavam vetadas pela cúpula.
Esses
encontros sempre foram meios de atualização muito importantes para mim.
Estabeleci tal relação de confiança com certas fontes da Vale que
nossas diferenças nunca impediram que conversássemos lealmente. Mas
frequentemente o que essas fontes diziam não era o que se realizava. A
política do governo provocava um distanciamento entre o que devia ser
feito e o que acabava sendo posto em execução.
Mais
recentemente, já privatizada, você poderia caracterizar, até mesmo em
termos de conduta – ou marca – pessoal, cada fase da Vale sob as
administrações Dauster, Steinbruch, Agnelli? Eles conseguem imprimir um
modo de administração que reflita diretrizes próprias de gerir e
executar? Ou, por outra, diante da dimensão tentacular da companhia,
sempre crescente, o que um presidente efetivamente manda?
O
embaixador Jório Dauster foi uma peça essencial na transição da empresa
estatal para a empresa privada. Ele tinha a perfeita consciência de
qual era a função de uma empresa do Estado e das políticas públicas que a
condicionavam. Mas tinha outro pé (como diria FHC) na empresa privada.
Além disso, era um autêntico intelectual, além de um cavalheiro. Era um
prazer conversar com ele.
Steinbruch
personificou (e personalizou) a transição pós-privatização, que eu
poderia caracterizar como uma bacia das almas. Foi uma fase
especulativa, de interesses camuflados, e da busca obsessiva pela
lucratividade (e seus rendimentos). Eu não conseguia deixar de
associa-lo a Baby Pignatary todas as vezes que o via ou dele tinha
referências. Daqui a algum tempo teremos, em relação a ele, a mesma
memória de incredulidade que temos diante de fotos da seleção brasileira
com jogadores dos quais nem mais lembramos. Como é que ele chegou ali?,
era o que pensamos. É o que pensaremos de Steinbruch.
Agnelli me parece um yuppie
e, por isso mesmo, de certa forma em descompasso com o tempo. É
agressivo, autossuficiente, arrogante e um homem do sistema financeiro.
Costuma-se recomendar a quem vê um banqueiro se jogar pela janela de um
prédio a segui-lo. Deve ter alguma razão para ganhar dinheiro agindo
assim. Agnelli parece parte dessa mística. Faz coisas que chocam. Mas
ficamos atrás de alguma razão para ele ter agido dessa forma. Pode ser
mais uma ilusão. O certo, porém, que o futuro diante da Vale é imenso.
Nenhuma empresa no mundo dispõe de uma logística igual. É o seu caminho
para ser, de fato, a primeira multinacional brasileira.
Ainda
em relação à marca pessoal de cada presidente, o Pará recebeu
tratamento diferente – fruto de conhecimento e sensibilidade distintos –
de parte de cada um deles? E neste caso, incluindo esta marca pessoal
(abrangendo os presidentes do período estatal) e elevando-a à mudança do
controle administrativo (de estatal a privado), o que mudou, tanto a
partir da nossa perspectiva paraense quanto da ótica da empresa?
Os
altos executivos da Vale não foram ainda obrigados a tratar o Pará num
nível de igualdade ou de respeito compatível com a importância do Estado
nos negócios da empresa. Essa mudança de enfoque não será conseguida
apenas com gritos e ameaças. O Estado, através de suas elites, precisa
se fazer respeitar. O respeito que mais conta: o da inteligência.
Precisamos aprender a identificar o que é melhor para nós e a mostrar
aos interlocutores da Vale que estamos tão preparados para enfrentar os
problemas comuns quanto eles.
A
partir da perspectiva do interesse público, precisamos ser capazes de
nos anteciparmos às situações criadas, ao invés de sempre reagirmos aos
fatos consumados ou em consumação. Do contrário, vai persistir essa
mútua incompreensão e esse insensato bater de cabeças cujo resultado
depende da dureza de cada cabeça.
Finalmente,
penso, um século depois, naqueles argumentos deterministas – racial,
geográfico, climático – que margearam a execução de Os Sertões,
mas que a genialidade do maior escritor brasileiro fez explodir para
dar livre curso a mais inquietante de todas as nossas obras literárias.
Muito bem, um século depois do livro de Euclides da Cunha, tendo a Vale
como eixo e intérprete do mundo dominante (incluindo São Paulo com
escala em Brasília), cultural e econômico, a que fatores deterministas o
Pará permanece aprisionado? Será realmente possível construir aqui um
Estado à altura de suas riquezas?
Que
é possível, não tenho dúvidas. Questiono-me é se seremos capazes de
dominar essa possibilidade. Minas Gerais, que superaremos algum dia como
maior Estado minerador do Brasil, saiu do seu subdesenvolvimento e do
estado de indigência em que a decadência do ciclo da mineração a deixou
por um ato de vontade. A partir do governo Milton Campos, logo depois do
Estado Novo, mas aproveitando-se da política getulista de
desenvolvimento, o Estado se conscientizou de que precisava deixar de
ser uma área agrícola, sem unidade, sem comando central, preso ao
passado e fragmentado por oligarquias enquistadas geograficamente. Com
planejamento e quadros técnicos, começou o caminho da industrialização.
Hoje, Minas é a segunda economia do país.
Precisamos
aprender com a experiência dos mineiros. Precisamos dialogar com os
capixabas, que se tornaram satélites de Minas, embora apareçam da mesma
maneira como os maranhenses diante de nós. Precisamos conversar com o
Maranhão, com o Rio de Janeiro, com aquelas comunidades internacionais
que podem nos ajudar a escapar desse “destino manifesto” de colônia. É
urgente a tarefa de romper os antolhos mentais e culturais que nos
impedem de tomar consciência da nossa condição de território rico.
Se
temos um polo de alumínio de porte mundial, uma hidrelétrica que
responde por 8% da produção mundial e alguns dos itens de importância na
balança comercial, temos que dominar tecnicamente essas questões e
dispor de ferramentas de antecipação. Ou seja: precisamos nos abrir para
os vizinhos em situação semelhante à nossa e para parceiros potenciais
do outro lado do mar ou de nossas fronteiras terrestres. O Pará está no
mundo e é preciso trazer o mundo que nos interesse para o Pará. Como
disse Glauber Rocha, parafraseando Euclides: ou o sertão vira mar, ou o
mar vira sertão
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