terça-feira, 31 de julho de 2012

A elite da Vale uma década atrás

by Lúcio Flávio Pinto
 

Dei a entrevista abaixo em junho de 2003. No arquivo não ficou o registro de para quem ela foi dada, mas talvezs tenha sido para um jornal de Belém.Acho que ainda é útil.
Até que nível de direção da Vale teus artigos atingem (e já atingiram em outras épocas e diretorias)? A mineradora, por sua vez, já desceu de seu Olimpo para te responder, contraditar? Ou já te convidou a subir até lá para dialogar?
O presidente da Vale com quem mais tive contato foi o último da fase estatal da empresa, José Schettino. Certa vez ele me convidou para ir ao Rio e conversamos informalmente em seu gabinete, que me espantou pelo detalhe, bastante sugestivo, de ser decorado com motivos japoneses (o Japão era, até o ano passado, o maior comprador do minério de ferro de Carajás e um dos grandes parceiros da CVRD). Ele teve um gesto que me sensibilizou muito.
Escreveu uma carta elogiando o meu trabalho e ressaltando que, apesar de nossas divergências, a Vale reconhecia meu empenho na defesa do interesse público e minha seriedade. Juntei o documento nos processos que Rosângela Maiorana Kzan, do grupo Liberal, moveu contra mim, a pretexto de ter sido ofendida em sua honra por meus artigos.
Schettino era um engenheiro de carreira na empresa, como a maioria dos seus diretores. Por ser estatal, a Vale tinha que ceder a injunções políticas, mas conseguiu isolar essa cota num compartimento isolado. Só eventualmente esse peso político teve influência mais forte nas decisões da empresa. Seu grande patrimônio foi ter formado uma cultura técnica e ética entre seus funcionários. Vários deles, com cargos de chefia, foram meus interlocutores desde que a empresa se instalou no Pará, em 1969.
Alguns ficaram sendo meus amigos. Eram (e ainda são) pessoas de espírito público, profissionais competentes, honrados, dispostos a contribuir para a melhoria do país. Como nem sempre podiam se manifestar publicamente, conversavam comigo em off quando precisavam expressar posições ou divulgar informações que estavam vetadas pela cúpula.
Esses encontros sempre foram meios de atualização muito importantes para mim. Estabeleci tal relação de confiança com certas fontes da Vale que nossas diferenças nunca impediram que conversássemos lealmente. Mas frequentemente o que essas fontes diziam não era o que se realizava. A política do governo provocava um distanciamento entre o que devia ser feito e o que acabava sendo posto em execução.
Mais recentemente, já privatizada, você poderia caracterizar, até mesmo em termos de conduta – ou marca – pessoal, cada fase da Vale sob as administrações Dauster, Steinbruch, Agnelli? Eles conseguem imprimir um modo de administração que reflita diretrizes próprias de gerir e executar? Ou, por outra, diante da dimensão tentacular da companhia, sempre crescente, o que um presidente efetivamente manda?
O embaixador Jório Dauster foi uma peça essencial na transição da empresa estatal para a empresa privada. Ele tinha a perfeita consciência de qual era a função de uma empresa do Estado e das políticas públicas que a condicionavam. Mas tinha outro pé (como diria FHC) na empresa privada. Além disso, era um autêntico intelectual, além de um cavalheiro. Era um prazer conversar com ele.
Steinbruch personificou (e personalizou) a transição pós-privatização, que eu poderia caracterizar como uma bacia das almas. Foi uma fase especulativa, de interesses camuflados, e da busca obsessiva pela lucratividade (e seus rendimentos). Eu não conseguia deixar de associa-lo a Baby Pignatary todas as vezes que o via ou dele tinha referências. Daqui a algum tempo teremos, em relação a ele, a mesma memória de incredulidade que temos diante de fotos da seleção brasileira com jogadores dos quais nem mais lembramos. Como é que ele chegou ali?, era o que pensamos. É o que pensaremos de Steinbruch.
Agnelli me parece um yuppie e, por isso mesmo, de certa forma em descompasso com o tempo. É agressivo, autossuficiente, arrogante e um homem do sistema financeiro. Costuma-se recomendar a quem vê um banqueiro se jogar pela janela de um prédio a segui-lo. Deve ter alguma razão para ganhar dinheiro agindo assim. Agnelli parece parte dessa mística. Faz coisas que chocam. Mas ficamos atrás de alguma razão para ele ter agido dessa forma. Pode ser mais uma ilusão. O certo, porém, que o futuro diante da Vale é imenso. Nenhuma empresa no mundo dispõe de uma logística igual. É o seu caminho para ser, de fato, a primeira multinacional brasileira.
Ainda em relação à marca pessoal de cada presidente, o Pará recebeu tratamento diferente – fruto de conhecimento e sensibilidade distintos – de parte de cada um deles? E neste caso, incluindo esta marca pessoal (abrangendo os presidentes do período estatal) e elevando-a à mudança do controle administrativo (de estatal a privado), o que mudou, tanto a partir da nossa perspectiva paraense quanto da ótica da empresa?
Os altos executivos da Vale não foram ainda obrigados a tratar o Pará num nível de igualdade ou de respeito compatível com a importância do Estado nos negócios da empresa. Essa mudança de enfoque não será conseguida apenas com gritos e ameaças. O Estado, através de suas elites, precisa se fazer respeitar. O respeito que mais conta: o da inteligência. Precisamos aprender a identificar o que é melhor para nós e a mostrar aos interlocutores da Vale que estamos tão preparados para enfrentar os problemas comuns quanto eles.
A partir da perspectiva do interesse público, precisamos ser capazes de nos anteciparmos às situações criadas, ao invés de sempre reagirmos aos fatos consumados ou em consumação. Do contrário, vai persistir essa mútua incompreensão e esse insensato bater de cabeças cujo resultado depende da dureza de cada cabeça.
Finalmente, penso, um século depois, naqueles argumentos deterministas – racial, geográfico, climático – que margearam a execução de Os Sertões, mas que a genialidade do maior escritor brasileiro fez explodir para dar livre curso a mais inquietante de todas as nossas obras literárias. Muito bem, um século depois do livro de Euclides da Cunha, tendo a Vale como eixo e intérprete do mundo dominante (incluindo São Paulo com escala em Brasília), cultural e econômico, a que fatores deterministas o Pará permanece aprisionado? Será realmente possível construir aqui um Estado à altura de suas riquezas?
Que é possível, não tenho dúvidas. Questiono-me é se seremos capazes de dominar essa possibilidade. Minas Gerais, que superaremos algum dia como maior Estado minerador do Brasil, saiu do seu subdesenvolvimento e do estado de indigência em que a decadência do ciclo da mineração a deixou por um ato de vontade. A partir do governo Milton Campos, logo depois do Estado Novo, mas aproveitando-se da política getulista de desenvolvimento, o Estado se conscientizou de que precisava deixar de ser uma área agrícola, sem unidade, sem comando central, preso ao passado e fragmentado por oligarquias enquistadas geograficamente. Com planejamento e quadros técnicos, começou o caminho da industrialização. Hoje, Minas é a segunda economia do país.
Precisamos aprender com a experiência dos mineiros. Precisamos dialogar com os capixabas, que se tornaram satélites de Minas, embora apareçam da mesma maneira como os maranhenses diante de nós. Precisamos conversar com o Maranhão, com o Rio de Janeiro, com aquelas comunidades internacionais que podem nos ajudar a escapar desse “destino manifesto” de colônia. É urgente a tarefa de romper os antolhos mentais e culturais que nos impedem de tomar consciência da nossa condição de território rico.
Se temos um polo de alumínio de porte mundial, uma hidrelétrica que responde por 8% da produção mundial e alguns dos itens de importância na balança comercial, temos que dominar tecnicamente essas questões e dispor de ferramentas de antecipação. Ou seja: precisamos nos abrir para os vizinhos em situação semelhante à nossa e para parceiros potenciais do outro lado do mar ou de nossas fronteiras terrestres. O Pará está no mundo e é preciso trazer o mundo que nos interesse para o Pará. Como disse Glauber Rocha, parafraseando Euclides: ou o sertão vira mar, ou o mar vira sertão

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