LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
Editor do Jornal Pessoal e articulista de O Estado do Tapajós
21 de outubro de 2010.
BELÉM, Pará – Ninguém poderá tratar da
história contemporânea de Santarém sem considerar a vida e a obra de
Emir Bemerguy. Ele já viveu 77 anos e, fora os últimos, quando a doença o
fez recolher-se, viveu intensamente os acontecimentos do município e de
todo Tapajós. Viveu e testemunhou: é um dos raros personagens que
documentou os fatos, deu sua opinião e a registrou de forma pública,
através da imprensa, com uma invejável produção.
Parte considerável dela foi reunida no livro Santarenices – Coisas de Santarém
(294 páginas), lançado recentemente pelo Instituto Cultural Boanerges
Sena, de Cristovam Sena, hoje a principal fonte de referência sobre a
região. O livro contém os principais artigos que Emir Bemerguy
escreveu entre 1966 e 1998. Alguns deles são os únicos documentos por
escrito de determinados acontecimentos. Por isso, a obra passa a ser de
consulta obrigatória para quem quiser reconstituir essas mais de três
décadas.
Nesse período, Emir não chegou a passar
“quatro meses longe de Santarém”, conforme declara, o que é bom e ruim.
Bom porque seu testemunho é mesmo vivencial, de ver e sentir, conhecendo
os atores do enredo, vários deles seus amigos de longa data. Ruim
porque o sedentarismo, que leva à rigidez das raízes, prejudica certas
análises e interpretações que ele fez.
Elas são distorcidas pelo
conservadorismo, a religiosidade e certa autocomiseração do autor,
tornando-o às vezes extremado, dogmático ou impulsivo na apreciação dos
eventos cotidianos. Apesar de a sua formação espiritual o encaminhar
para a tolerância ao contrário e ao diverso, Emir teve rompantes de
intolerância, sobretudo na fase mais crítica da história de Santarém,
durante a crise que levou ao afastamento do então prefeito Elias Pinto.
Autoritarismo adquirido
Depois de escrever artigos ponderados, no
ápice dessa crise, em 1968, Emir incorporou o espírito autoritário da
época: “No meu débil entendimento, não consigo compreender como, em
plena vigência de um governo revolucionário, não se tenha condições de
intervir, legalmente ou não, para retirar esta cidade das manchetes
sensacionalistas dos jornais.
Com carnavalescos, no Centro Recreativo de Santarém /ERCIO AFONSO |
Fez-se uma Revolução
para varrer do país os corruptos e os subversivos; se a corrupção e a
baderna voltam, intensificadas, como ora se verifica aqui, configura-se,
a meu ver, o descalabro, a situação excepcional que está a precisar de
um severo e imediato corretivo”. Pretendia “uma solução pacífica e
legal, se for possível; fora da lei, sendo necessário...”
Essa solução acabou adotada, com a
inclusão de Santarém dentre as áreas de segurança nacional, que não
podiam mais escolher pelo voto popular seu dirigente máximo, o prefeito
municipal. A partir daí baixariam os prefeitos nomeados pelo governador e
sujeitos à aprovação dos órgãos federais de informações. Alguns dos
quais elogiados por Emir. Outros, criticados. Ele continuou a ter voz
ativa, escrevendo não mais apenas para os instáveis ou efêmeros jornais
locais, mas também para os principais órgãos da imprensa paraense, como a
Folha do Norte (já extinta) e O Liberal. Conforme ele
próprio não deixa de anotar, era o único autor do interior do Estado
acolhido pelos jornais de Belém. Não é pouca coisa.
Estranha combinação de homem e paisagem
A participação de Emir Bemerguy ao longo
das três décadas de jornalismo semanal merece ser levada na devida
conta. Ele testemunhou a descaracterização acelerada da cidade pequena,
onde todos se conheciam e havia certa identidade difusa na sociedade, em
torno de elementos da cultura valorizados (como a música, o artesanato e
certas manifestações literárias, como a música), além do apreço pelas
riquezas naturais da região, a maior delas a combinação do rio com suas
margens de areia branca. E a metamorfose em algo ainda indeciso e
inconcluso, mas profundamente alterado pela intervenção do estrangeiro
(assim, mesmo quando de dentro do país).
Essa combinação de homem e paisagem é
totalmente estranha aos que planejaram e executaram a travessia da
cidade de um pólo a outro. Com suas pranchetas instaladas fora da região
e avalizadas pelo poder centralizado em Brasília, que expedia éditos
quase reais, eles equalizaram a cidade litorânea a uma urbe qualquer.
Num dos seus artigos, Emir protesta com toda razão contra a desfiguração
de Santarém quando o órgão federal pôs em prática projeto próprio, que
engoliu a praia e emparedou o que restava do “belíssimo litoral defronte
da cidade”. Podia ter sido muito diferente se a vontade de Santarém não
tivesse começado a ser castrada pela intervenção federal de 1969, que
duraria quase duas décadas.
Saudosismo e rabujice
À medida que o tempo passa, os artigos de
Emir passam a ser necrológios: das pessoas, da cidade, de seu modo de
vida, dos seus valores, da sua cultura – tudo sacrificado na pira do
crescimento demográfico e econômico, travestido de progresso. O escriba
se insurge contra a ação avassaladora dos imigrantes e dos intrusos,
incluindo o governo de Brasília.
Certas manifestações suas podem ser
classificadas de saudosistas, provincianas, rabugices. Muitas outras,
não. Ele expressou como poucos valores de grande significado para os
nativos, que os colonizadores (claro, sob outras denominações menos
agressivas) desconhecem ou desprezam. Como eles têm o poder de mando,
são eles que decidem o que pode ser mantido e o que deve ser eliminado.
Os critérios da definição costumam ser obtusos e empobrecedores. Podem
possibilitar arrolamentos quantitativos de impressionar e convencer os
que vêem as mudanças por uma bitola estreita e curta.
Mesmo por esse ângulo, o balanço do que
foi realizado não é positivo. Em 1982 Emir podia dizer: “A nossa imensa
região vem contribuindo com 42% de tudo o que o Estado do Pará arrecada,
mas recebe pouco mais que migalhas como contribuição”. Essa injustiça
explicaria Santarém provavelmente ser então “a única cidade do mundo
inteiro que, ostentando o seu porte e a sua importância, não possui uma
Universidade”.
Homem de todo Tapajós
Universidades (ou centros de ensino
superior) agora já existem, públicas e privadas, formalizadas ou ainda
em casulo. Mas dos 42% de participação na receita, a região deve ter
baixado para menos da metade. Se, por um lado, as compensações
cresceram, a importância da região diminuiu. Nem por isso se fortaleceu a
campanha pela autonomia, através da criação do Estado do Tapajós,
bandeira à qual Emir foi aderindo aos poucos, desconfiado dos
patrocinadores da nova unidade federativa.
Se os números não convencem o analista
mais exigente, satisfazem muito menos os que utilizam parâmetros mais
qualitativos da antropologia, sociologia ou mesmo literatura. E quem
devia estar satisfeito, como beneficiário de tantos cavalos de pau
colocados na praça central da cidade, não está nada satisfeito.
Disso, Emir não deixa dúvida nos seus
artigos. Homem de todo Tapajós por sua nascença, em Itaituba, sua
infância, em Belterra (a segunda cidade fundada por Henry Ford), e a
maior parte da sua vida, em Santarém, Emir tem sensibilidade, olhos e
ouvidos para o mais íntimo da sua terra, para o mundo que já existia
antes dos colonizadores, verdadeirosbwanas à moda antiga, que consideram a si como o princípio de tudo, inclusive da história local, por eles ignorada ou desprezada.
Por isso se solidarizou com os
remanescentes do último quilombo da Amazônia, o do Trombetas, quando
eles foram expulsos de suas terras ancestrais para a criação de uma
reserva biológica federal, que visava combinar com sua contrafação, a
mina de bauxita do outro lado do rio, explorada por multinacionais.
A nova cultura que se forma é de voyuers,
turistas apressados, como o jornalista Miguel de Almeida. Embora sua
intenção fosse reconstituir a viagem que o antenadíssimo escritor Mário
de Andrade, um dos modernistas de 1922, empreendeu pela Amazônia em 1927
(como “turista aprendiz”), quase seis décadas antes, o repórter não fez
jus ao poeta.
Mereceu um tremendo puxão de orelhas de
Emir porque, ao passar meteoricamente por Santarém, disse nada ter
observado que merecesse registro. Nem o incrível encontro das águas
barrentas do rio Amazonas com as do azul – então ainda límpido –
Tapajós.
Um testemunho para ser lembrado
Não faltavam motivos para o visitante
lamentar a falta de opções de lazer na cidade, lacuna de ontem e de
hoje. Mas era totalmente insubsistente sua observação de que Santarém é
uma dessas cidades “desenraizadas e forjadas repentinamente pelo
progresso”. Nada mais oposto à verdade. E aí Emir foi buscar sua
chinela:
“Santarém não foi, meu bom Miguel,
forjada repentinamente pelo progresso, coisa nenhuma. Essa praga veio
chegando aqui aos poucos, trazendo todo o seu estoque de venenos e
remédios, de bênçãos e de maldições. Vivíamos muito melhor, com muito
mais fartura e paz, antes de aportarem aqui o desenvolvimento adoidado e
certos forasteiros que gostaríamos de ver à distância. O progresso nos
tem oferecido mais contrariedades e desassossego do que benefícios
reais. Mas isso é outra história, que não cabe aqui”.
O testemunho de Emir não pode ser
sepultado na cova rasa da incompreensão e do esquecimento, como vários
dos personagens cujo perfil ele traça, como se fora incumbido da extrema
unção de um mundo tão recente e já tão remoto, do qual ele é elemento
exemplar, uma espécie de “o último dos moicanos”. Mas que, felizmente,
graças a iniciativas como a de Cristovam Sena, não terá o destino
inglório de alguns dos seus companheiros de viagem.
Paulo Rodrigues dos Santos e João Santos
(nenhum parentesco, exceto as afinidades intelectuais) quiseram destruir
suas obras e arquivos, indignados com a indiferença da sociedade local.
Paulo esperou cinco anos pelo lançamento de Tupaiulândia, em
1971. Doente, não pôde vir a Belém para a solenidade, mas o governador
Fernando Guilhon o visitou em Santarém. Paulo Rodrigues morreu pouco
depois. Mas uma edição digna da sua obra só surgiria muitos anos depois
da primeira, patrocinada por uma instituição inteiramente local, o ICBS
de Cristovam.
Do muito que João Santos escreveu, resta
pouca coisa publicada. Infelizmente, seu arquivo permanece indevassável,
mantido em injustificável isolamento pela família, quando podia exercer
uma função fecundadora, como os três livros de Emir publicados nos
últimos tempos pelo Instituto Cultural Boanerges Sena.
3 comentários:
O confiável Lúcio Flávio sabe aquilatar com justiça o mérito de uma pessoa. O Emir Bemerguy deixou uma história; seus leitores, especialmente os nossos conterrâneos, saberão destacar os capítulos mais interessantes aos que não conheceram o poeta e escritor.
Minha solidariedade à família. Emir foi uma pessoa decente e um fecundo observador da história de Santarém. Deixa um legado que dignifica seu nome e honra seus sucessores. Lúcio Flávio Pinto
O ilustre, competente e muito querido professor, poeta, compositor e escritor Emir Bemerguy, primava sempre por dizer a verdade em seus artigos, em seus comentários, sem preocupação de agradar ou desagradar seus leitores. Foi uma figura admirável! Meus sentimentos aos seus familiares.
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